terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Espaço Tenebroso

Pode existir uma escola onde se enfatize a prática diária e persistente da humilhação, exclusão e vergonha? Pode isso ocorrer mesmo em estabelecimentos de ensino que se afirmam afinados com as mais avançadas estratégias de aprendizagem? Pode essa escola sobreviver em favelas e bairros nobres, em instituições públicas e particulares? Podem os educadores dessa escola, serem professores atenciosos à importância da educação dos sentimentos e do fortalecimento da alta auto-estima dos alunos e afirmarem ser também esta a sua mais importante missão?

A resposta a todas essas perguntas são afirmativas e talvez ainda mais amarga que essa certeza é a de que escolas com essas características não são raras e estão bem mais perto de nós e de nossos filhos do que possamos imaginar. Com ainda maior ênfase seria possível garantir que a maior parte das escolas são assim e o que é pior, raramente se dão conta de que seu espaço abriga e exalta a mentira, o sarcasmo, as diferenças e a vergonha.

E essa nossa convicção assim tão dura vem da certeza de que as escolas todas possuem recreio e, não raramente no mesmo, todas essas iniqüidades se ressaltam. Infelizmente, grandes partes das nossas escolas estão preocupadas com o que acontece na sala de aula e não poucas se desdobram em esforços para ajudar seus professores evoluírem muito e sempre na conquista das estratégias da aprendizagem significativa, na construção da significação e na elaboração de uma avaliação estruturada em verdadeiro diagnóstico. É bom, muito bom, que com estas coisas a escola se preocupe, mas o bom nem sempre equivale ao suficiente e isso tudo porque em todas as escolas existe o recreio.

O recreio é o espaço impiedoso da discriminação, da formação de gangues, da sujeição de alguns, da humilhação de muitos. É ali, não raramente, que os pequenos defeitos são transformas em culpas imensas e onde a criança incapacitada de libertar-se do fato de ser míope, gordo, feio, atrasado ou antipático é arrasada por apelidos marcantes, por regras de submissão, por desprezos e humilhações que empalidecem a grandeza do trabalho que, às vezes, dentro da sala de aula ocorre. O impacto de ações nesse tenebroso espaço sobre a auto-estima infantil e juvenil é impiedoso e muitas vezes maior que a imaginada por coordenadores e professores, pais e terapeutas. Existem crianças, e não poucas, que amam as aulas e odeiam o recreio, mas que muitas vezes disfarçam esse ódio na  indiferença de fingir que não sentem, e se argüidas, por vergonha de si mesmo, o escondem. Não raramente os amigos que se escolhe e os grupos a que se ligam não são como se pensa, forjados por recíprocas simpatias, mas por inevitável martírio do desprezo de não terem sido eleitos entre os melhores.

Mas, ainda pior, que a certeza da existência desse sinistro espaço de maldição é buscar ignorar que o mesmo existe, ou afirmar que as palavras que aqui se diz estão carregadas de exagero. Não estão, ainda que generalistas podem abrigar exceções se não porque esta ou aquela escola escapa do exemplo, com certeza porque para muitos alunos é justamente o recreio o lugar gostoso onde podem exercitar sua liderança e colocar em ação, contra os mais fracos, toda vileza de sua tirania, ainda que nem sempre consciente. Melhor que maldizer e lamentar a crueza fria desse espaço, por certo é buscar conhecê-lo melhor e desse conhecimento fazer nascer, aos poucos, meios para transformá-lo. Essa postura vale bem mais que câmaras ocultas ou vigilantes em profusão que despreparados para olhar, sabem apenas ver.


Não se trata de coibir, de propor a violência contra a violência. Como acima se destacou, muitas vezes o exercício da humilhação não é feito de forma consciente, a pratica rotineira da exclusão não é desenvolvida com a intencionalidade dos malvados e, dessa forma, bons conselhos dados em sala, não se traduzem em atos ali próximos exercidos. O que nos parece essencial é uma verdadeira radiografia das relações interpessoais, entrevistas íntimas e seguras com os excluídos, uma consciente e profunda pesquisa para ao se descobrir o mal, se buscar alternativas do remédio. Este, não poucas vezes, poderá vir da própria sala de professores se, desafiados, forem convidados a pensar como fazer do recreio um espaço de amizade e empatia e não um buraco negro de agressões ocultas, de exclusões explícitas, de cicatrizes que pelo resto da vida se herdará.

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