terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Um Programa Alternativo

A cena passa-se em um dia qualquer dos anos 1970, fase aguda da repressão militar. O professor de Geografia é chamado à sala da diretora que, além de seu papel de gestora, comandava também a orientação pedagógica, educacional, coordenação e todas as demais funções. Não que estas não existissem. Existiam, é claro, mas eram exercidas segundo regras, fundamentos, princípios e justificativas da diretora e dona do pedaço. Trava-se o seguinte diálogo:

-          Professor, chamei-o aqui porquê é agora necessário ministrarmos aulas de Educação Moral e Cívica e eu o escolhi para fazê-lo.

-          Mas, porque eu, senhora Diretora. Não existem por acaso outros professores que seriam mais adequados? Não ministro bem minha disciplina? Não seria desperdício usar-me para a rotina, para o servilismo de uma programação imposta?

-          Não meu caro, mestre. Se escolher um qualquer, ele por certo fará o que os militares desejam. Ministrará a disciplina sem sabor, sem criticidade, sem criatividade. Serão apenas mentes robotizadas pela ditadura. Escolhi o professor que mais admiro, aquele que mais respeito e sei que ele, e somente ele, será capaz de criar um programa alternativo. Ministrar essa tal de Educação Moral e Cívica com a cara que a imposição requer, mas na sutileza das entrelinhas levar os alunos a pensarem, acordar a criticidade e ao supor que levam para a casa uma bagagem sem cor, levam na cabeça idéias cheias de vida e de surpresa. Prepare o programa, apimente reflexões, faça surtir sua criatividade, mas organize diários de classe com a cara que o governo impõe.

Dois meses depois desse diálogo a escola mudou. As aulas de Educação Moral e Cívica passaram ser as mais procuradas e mais discutidas, as que envolviam escondidas em um manto de pureza, as idéias mais expressivas, os pensamentos mais ousados. Para quem olhasse a escola por fora, lá estavam seus conteúdos curriculares convencionais e estava também a Educação Moral que a ditadura sugeria, mas quem a assistisse de perto, sabia que a escola transformara-se em uma fábrica de reflexões, um laboratório de experiências. Mais tarde, “filhas” dessa disciplina surgiram projetos de defesa ambiental, ações de envolvimento comunitário, campanhas de apoio à construção da dignidade e da honra, serviços assistenciais voluntários.

Os tempos mudaram. Não mais existe nos currículos uma disciplina imposta, um programa para se praticar a bajulação e se exaltar a autoridade, uma mordaça à liberdade do pensar. Mas, será que a criatividade de uma programação alternativa nasce apenas em tempos de censura? Será que se convocarmos os professores mais críticos e mais brilhantes sugerindo-lhes a “criação” de uma disciplina alternativa, não ocorrerão idéias experimentáveis, projetos plausíveis? Será que a escola somente pode exercer a busca do diferente e do inusitado em tempos de terror?

Acreditamos sinceramente que não, como não menos sinceramente pensamos que o “aperto” do currículo não é tão cerceado em limites que impeça o criar de alguma outra disciplina que possa ensinar relações interpessoais, ações concretas de defesa da cidadania, projetos que exercitem alternativas de pensamento mediadas por espaços de reflexão, análise crítica do cotidiano, atos e procedimentos que solidifiquem amizades, aprendizagens significativas sobre um melhor comer e melhor se exercitar, para um mais bem viver É importante pensar que a tecnologia tornou a informação mais acessível e por mais intensa que seja a mesma, jamais poderá se impor fazendo com que exista conhecimento sem compreensão, aprendizagens que engessam a mente e impedem a significação e a contextualização. Por mais matéria que se tenha, sempre haverá tempo para melhor discuti-las.

É chegada a hora de uma nova alternativa no educar. Não seria o caso de se buscar nos professores mais criativos e mais reflexivos os fundamentos de uma usina de pensamentos? Não poderias estes, voluntariamente, criar modelos e sugerir a uma Coordenação? Se for necessário e em último caso faça de conta que o tempo não passou e que a democracia não sepultou a criatividade.

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